Sangue Real
“Acorde, Andira.” Lupsis aproximou-se da princesa, trazendo consigo dois frascos. Um de seus subordinados abriu a porta da jaula, deixando seu senhor adentrar a prisão de Andira.
Sem resposta, ele estendeu um dos frascos na direção da menina, e empunhou o outro.
Mal era possível distinguir as formas dos dois que estavam dentro daquela jaula. Lupsis precisava andar sempre de cabeça baixa, caso contrário sua testa acertaria o teto.
Sempre que tentava adormecer, Andira sentia que o cômodo inteiro iria desabar sobre ela. Melhor dizendo, era como se Andira desejasse que isso acontecesse.
Mesmo com a soturna luz de seu fogo-fátuo, Andira mal era capaz de ver as ranhuras que suas unhas deixavam no concreto escuro das paredes e do chão.
O teto, por sua vez, era ainda de pedras, como faria sentido ser, dado que a instalação onde eles estavam era no subsolo, construída nos escombros das Minas de L.A. Era impossível, contudo, saber o quão longe da superfície eles estavam.
O ar era rarefeito, e os odores que entravam naquele lugar não encontravam forma alguma de sair.
Os únicos ruídos que os próprios homens não provocavam eram os sons das gotas que pingavam dos estalactites.
A cela de Andira, contudo, não tinha nenhum, pois poderiam ser usados como arma por ela.
A preocupação de Lupsis, claro, não era ser atacado. Na verdade, era que seu precioso experimento desse fim a si próprio.
“Sabe, Andira… Não é fácil receber o dom da eternidade. A síntese do meu mais novo elixir obteve excelentes resultados na pesquisa em ratos…” Ele conversou, embora Andira não quisesse ouvi-lo. “Mas você é o único experimento humano que sobreviveu.”
Encolhida em um canto, abraçando os próprios joelhos, Andira chorava de fome, sede e solidão.
“Nem mesmo eu reajo tão bem ao Tanito quanto você.” Lupsis afirmou, sorrindo. “Você será meu legado, Andira. Você entende a grandiosidade disso!?”
Ela não respondeu.
“Seu corpo carece da capacidade de lutar contra agentes externos, Andira. É por isso que você sempre adoecia no palácio, cercada de outros humanos imundos. Aqui, minha protegida, você ficará segura… Para sempre.”
Como a única medida cabível de resistência, Andira afastou-se de Lupsis e, então, cuspiu nos pés de seu captor.
Ele suspirou, contendo o desagrado que teve diante desse desrespeito.
“Bem, talvez você se anime depois de dar mais um gole no elixir da juventude. Ou será que você iria preferir entrar em combustão e me queimar junto, como seu avô fez com seus inimigos?! Hahahahahaha!” Ele gargalhou, derramando o elixir de Tanito no chão diante da princesa.
Pela primeira vez desde que ele entrou na prisão, ela se moveu para perto. Como um animal, rastejou até a poça e lambeu-a, sem um pingo da dignidade própria de um membro da família imperial.
“Ah, e Andira… Se lembra de quando falei que seu irmão assumiu o trono imperial após a morte de seu pai?”
Andira voltou-se para Lupsis.
“É… Infelizmente, ele também faleceu. Houve um golpe de estado em Volcor. Mas não se preocupe, isso sempre acontece de séculos em séculos. Eu mesmo já vi outras duas vezes.”
Andira arregalou os olhos, horrorizada. Ela não sabia se o medo que sentiu da vida quase eterna de Lupsis Apolion era maior do que o desejo de ter visto seu irmão mais uma vez. Ele, por sua vez, gargalhou. Gargalhou tanto que era possível ouvir sua euforia de todos os outros quartos dessa prisão que ele chamava de laboratório.
Havia se passado mais de uma década desde que Andira foi trazida às terras de L.A, mas ela não parecia ter envelhecido mais do que um ano.
Sua aparência jovial manteve-se, conservada pelo Tanito, como se esculpida diretamente no mineral.
“Inclusive, Andira… Eu fiz um novo amigo, agora. Ele virá te visitar, também. Mas ainda não consegui lembrar o nome dele… Sinta-se honrada por eu ainda lembrar-me do seu.” Lupsis continuou, deixando Andira voltar a lamber o Tanito espalhado no chão.
“Eu o chamo de Escultor. Ele tem uma visão artística fantástica… Nem com o triplo de meus numerosos anos de vida eu seria capaz de adquirir o talento dele.”
“Juntos, nós tivemos uma ideia. Metrix anda inventando algumas coisas muito interessantes acima de nós, aqui…”
De repente, Andira sentiu-se sonolenta.
“Ah, é… Esqueci de avisar… O elixir de hoje era um pouquinho diferente…” Ele disse, sorridente, virando-se para longe da princesa. “Boa noite, Andira.”
Os olhos dela, que antes estavam arregalados de terror, foram recobertos por suas pálpebras, e sua consciência esvaeceu.
Quando acordou, algo não estava certo. Andira não conseguia ver.
Ao invés disso, havia outra coisa…
Tons de cinza, preto e branco. Sem formas, como se fossem rabiscos.
“Ela ainda ouve, Lupsis?” De repente, uma voz desconhecida perguntou.
“Eu não sei dizer, Doutor. Apenas ela saberá.”
“Eu não mexi nos ouvidos dela, seus malucos. Apenas em seus olhos. Ah, vejam! Ela os abriu! Vejam só, que gloriosas pérolas! Sim… É minha obra-prima.” Outra voz, de repente, comemorou.
Quantas pessoas havia naquela sala!? Andira questionou-se de novo e de novo, mas não conseguia ter certeza.
Então, ela se concentrou, e formas humanoides começaram a aparecer. Três homens, dois menores e um grande. Já não restavam dúvidas.
“Ah, Escultor… Como sempre, seu trabalho não cansa de me surpreender.”
“Obrigado, Mestre Lupsis.” Reverenciando-se, o Escultor agradeceu.
Os três homens ali presentes eram o Escultor, um outro chamado de Doutor, e Lupsis Apolion.
“Andira, você nos vê?” Apolion perguntou, virando-se para ela.
Sentindo seu próprio corpo, Andira percebeu que estava deitada em uma maca.
“O que vocês fizeram comigo!? Monstros!” Foi necessário que ela começasse a esbravejar para entender. Andira estava presa, amarrada na maca, e não era capaz de mover os membros mais do que alguns centímetros de frouxidão das amarras.
“Ah, Andira…” Lupsis suspirou.
“Seus olhos foram removidos, princesa, e trocados por algo maior.” O Doutor comentou.
“Com a nova invenção do Mestre Lupsis… Eu pude criar prismas de Tanito. Então, os esculpi em forma de pérolas, e… Seus novos olhos agora veem o fluxo da energia vital das coisas, Andira. Diga-me… Como é?”
“Eu…” Andira tentou responder, mas o medo comeu sua língua.
“Não! Não me diga! Eu farei mais, e o Doutor os implantará em mim dessa vez! Hahahahaha!” O Escultor gargalhou, desaparecendo do campo visual de Andira.
Então, Andira foi solta de suas amarras por Lupsis e o Doutor. Com seu primeiro reflexo, aproximou a mão do próprio rosto, e sentiu seus novos olhos. Eram duros e frios, como pedras. Mas ela era capaz de se ver.
Seu corpo era todo branco, assim como o de Lupsis. Os corpos dos outros homens eram cinzentos, com pontos pretos…
Andira questionou se isso tinha a ver com o fato de ela e Lupsis ingerirem Tanito regularmente.
E Lupsis ficou fascinado com a teoria da princesa.
Ela, contudo, não conseguiu ver o sorriso de seu captor. Aliás, ela nunca mais veria um sorriso. Os rostos não assumiram formas ou expressões. Os corpos eram apenas massas de luz branca ou cinzenta.
Passado algum tempo, deixada em completa solidão, Andira adormeceu novamente.
E, então…
“Ah… O corpo dela está fantástico, Escultor…” De repente, ela ouviu a voz de Lupsis.
E Andira já não mais sentia os próprios braços e pernas.
“Resta saber se ela conseguirá mover os novos apêndices…” O Doutor, com voz de preocupado, comentou.
“Não duvide do Tanito, Doutor.” Lupsis, então, repreendeu-o.
“Aliás, caro mestre… Como progrediram os experimentos da roda sacrificial?”
“Espere e verá, Doutor… Espere e verá. Eu acredito que, quando removermos o coração de Andira… O fogo-fátuo despertará, e suas chamas alimentarão para sempre o Tanito em seu corpo.”
“Fascinante…” Os olhos do Doutor brilharam com a afirmação de Lupsis. Andira, claro, não viu.
Quando olhou para onde estariam seus pés, Andira pôde ver claramente o formato daquilo que havia sido colocado em seu lugar.
Tanito. Pernas metálicas feitas exclusivamente com o Tanito.
Quando Andira viu onde o Tanito se conectava com sua carne, Andira quis vomitar.
Porém não conseguiu. Já havia meses que nada além de sangue e Tanito adentravam seu estômago.
Com a ira de ter seu corpo destruído por aqueles que a viam como nada além de um projeto de ciências, Andira moveu seus braços, tão metálicos quanto as suas pernas, violentamente.
Eles eram mais fortes do que os braços de qualquer guerreiro humano.
Andira sentiu-se poderosa.
Andira sentiu o poder do Tanito.
As amarras que a prendiam se romperam, assustando seus captores.
E, numa vã tentativa de esgotar os limites do próprio sofrimento, Andira usou as garras de suas mãos metálicas para tentar arrancar o próprio coração.
Seu sangue jorrou pela prisão.
“Andira!” Lupsis berrou, aflito.
Um zumbido preencheu os ouvidos de Andira, e ela novamente adormeceu.
Dessa vez, ao despertar, Andira viu-se cercada por figuras encapuzadas.
Um Lupsis, já bem mais velho, aproximou-se dela.
“Andira…” Sua voz fraquejou.
Quando prestou atenção, viu um buraco, escuro como o breu, preenchendo o peito de Lupsis. No centro desse buraco, havia um pássaro preso, como ela, em uma jaula.
O pássaro grasnava, fraco. Quase inaudível.
Um dos homens encapuzados deu um passo à frente, trazendo consigo um rato em suas mãos.
Então, ele estendeu a mão e colocou o rato dentro da gaiola no peito de Lupsis.
Rapidamente, o pássaro começou a bicar o rato, e arrancar dele seus membros. Logo, eviscerou-o e devorou-o por completo.
Lupsis suspirou, aliviado, como se tivesse recobrado toda a sua energia.
Sua pele alisou-se, seus cabelos escureceram. Sua voz voltou a retumbar, forte.
Seus músculos cresceram, sua postura foi corrigida.
“Estou vendo você olhar para meu peito, Andira…” Ele comentou, contente.
Andira, por sua vez, nada mais disse.
“Esta é a Roda Sacrificial, Andira. Como meu último ato neste mundo, passarei-a para você. Fiz o Escultor construir a pele que a cobrirá… E, hoje, sua vida será sacrificada em nome da eternidade.”
“A… Apolion…” Andira murmurou.
“Ah, então você se lembra. É bom saber que não me esqueceu, mesmo depois de tantos anos, Andira…” Cruzando os braços, ele sorriu. “Deixar você aos cuidados desse pessoal foi uma ótima escolha, afinal.” Lupsis continuou.
Ele aproximou-se mais, tocando o rosto de Andira. Suas mãos eram frias como o Tanito, mas era possível saber pela textura que ainda eram de carne.
“Sabe… Eu tive muito medo depois da sua última brincadeira… Não foi fácil salvar seu coração…”
Andira virou para o outro lado, desprezando-o.
Dois homens encapuzados aproximaram-se, trazendo consigo as duas metades de algo que parecia uma armadura. Ou melhor, talvez parecesse mais com uma carapaça de um besouro.
Era, também, feita em Tanito.
E tinha, também, um buraco no meio, onde poderia ser encaixada a Roda Sacrificial que descansava no peito de Lupsis.
De repente, os outros encapuzados que não se moviam começaram a murmurar.
“Andira… Andira… Andira…”
E o volume de suas vozes foi aumentando, e aumentando cada vez mais.
“Andira! Andira! Andira!”
Andira foi erguida pelas amarras, que agora eram correntes rígidas de Tanito.
Puxada pelos braços, seu corpo foi içado até ficar na vertical, com os pés no chão.
Seus braços de metal não sentiam o apertar das correntes, mas Andira sentia o enorme peso de suas pernas de metal.
Ela sentiu-se como se estivesse sendo rasgada ao meio.
Tudo que ela via eram as silhuetas distorcidas e amalgamadas dos cultistas que clamavam seu nome.
E, então, as duas metades da armadura foram colocadas sobre sua pele, encaixando-se e prendendo-a.
“Doutor… Está na hora.” Lupsis afirmou.
“Adeus, Mestre Lupsis. Foi uma honra.” O Doutor, agora entrando no campo visual de Andira, respondeu e despediu-se.
Lupsis deitou-se, e deixou que a Roda Sacrificial que o alimentava fosse removida cirurgicamente.
“Andira! Andira! Andira!” Os encapuzados gritavam, preenchendo por completo aquela pequena cela que havia se tornado o lar da princesa.
“Andira… Herdeira do Sangue Azul, Princesa do Sangue Dourado, Humana de Sangue Vermelho… Nenhum sangue será mais nobre, nenhum Sangue Real poderá superar, em toda a história, o sangue dos milhares de sacrifícios que circulam nas entranhas do metal que lhe envolve. Deixe, agora, que sua carne e sangue sejam devorados pela Roda Sacrificial… E torne-se uma com o metal, o Tanito, que lhe deu a vida eterna!”
Então, o Doutor acoplou a Roda Sacrificial à carapaça de Andira. Lentamente, sua carne começou a ser devorada como sacrifício. O pássaro que vivia dentro da jaula tentou fugir, mas os braços de Andira reagiram sozinhos e o trouxeram de volta para o centro da roda para ser, também, devorado.
Andira não sentia nada além de dor e frio. Contudo, nem mesmo aqueles que assistiram à cerimônia seriam capazes de descrever essa dor e esse frio.
A expressão estampada na face de Andira já não era mais algo próprio de um ser humano.
“Andira! Andira! Andira!” Os gritos continuaram.
A longa vida do homem que descobriu o Tanito chegava ao fim… Dando lugar à quase-vida e quase-morte da princesa que agora carregava o Tanito em sua pele, em suas entranhas e em seu sangue.
Tudo de vida que ali existia fora devorado pelas propriedades do Tanito.
Já não havia mais sangue ou entranhas no corpo de Andira.
Restava apenas o metal.
Restava apenas Tanito, e a fome de novos sacrifícios para manter sua alma aprisionada naquele corpo rígido de metal que ela ainda era capaz de controlar.
Por fim, ao término da cerimônia, Lupsis levantou uma última vez. A cada segundo parecia que se passavam anos na aparência do homem.
A ele foi dada a máscara de Andira, que cobriria e devoraria seu rosto, a última obra criada em vida pelo Escultor. Sua verdadeira obra-prima.
Então, colocando essa máscara sobre o rosto de Andira, Lupsis sentiu como se estivesse coroando-a.
“Andira, Imperatriz dos Pesadelos! Andira, Pesadelo Imperioso!” Ele gritou, e os encapuzados gritaram junto.
“Saúdem sua nova Imperatriz, seus vermes!” Lupsis berrou, gastando a última fagulha que restava de sua voz.
Então, ele caiu para trás. E Andira ergueu-se.
Seu renascimento era tudo, menos natural.
Um amálgama de metal, de Aether e das sombras de onde o Sol não ilumina.
Ela ergueu-se primeiro com as pernas, que esticadas tocavam o chão. Então, ela ergueu suas mãos, arrancando do teto as correntes que seguravam seus braços.
Partes da caverna começaram a desabar e, depois de uma estalactite acertá-la, a cabeça de Andira ergueu-se para seu devido lugar.
É dito que apenas o Doutor não se tornou um dos sacrifícios de Andira naquela noite.
Não se sabe se foi por bondade da própria Andira, ou se ela se sentiu satisfeita apenas com aqueles que gritavam seu nome.
Não se sabe nem o que restou da velha Andira após sua coroação.
Por muitos anos, o Doutor conseguiu deixá-la presa na mesma jaula em que sempre a prendeu, enviando outros para lhe oferecer sacrifícios e se tornarem os próprios sacrifícios.
Eventualmente, somente aqueles que tiveram sua vida estendida pelo Tanito sabiam da existência da Imperatriz dos Pesadelos.
Outros passaram a tratá-la como uma lenda.
A Era do Bronze chegou ao fim, e a Deusa do Sol deu suas bênçãos para a fundação de Solana. O futuro logo chegou, e Metrix prosperou junto à passagem do tempo.
As fênix e os dragões brigaram entre si dezenas de vezes em sua terra natal de Volcor.
A lenda do fogo-fátuo foi esquecida pelo tempo devido à morte prematura de Drugo, o ex-príncipe e irmão-gêmeo de Andira.
Ao redor das minas de Lupsis, nasceram os Pits.
Enquanto isso, lá estava Andira, ainda viva, enterrada nas sombras do subsolo das terras de L.A.
Ao longo das eras, outros cientistas descobriram algumas das propriedades do Tanito. Contudo, nenhum o fez tão bem quanto Lupsis Apolion, senhor da Fonte da Juventude.
Ninguém tem certeza de quanto tempo teria se passado desde então.
Somente depois de, certamente, muito tempo, num belo dia…
Andira viu-se liberta.