Sangue Vermelho
Um toque delicado à porta do quarto de Andira, ainda que suficiente para ser notado, ecoou pelo cômodo silencioso onde estavam a princesa, duas de suas amas, e um curandeiro contratado pela família imperial.
A ama mais velha, de prontidão, posicionou-se entre a porta e o cômodo, abrindo somente uma fresta e deixando o trinco preso. Não estavam aguardando visitantes noturnos.
“Pois não?” Ela indagou.
Do outro lado, apenas uma mão estendeu-se, adornada com aneis e unhas pintadas. Uma mão grande, masculina, com um anel de polegar que incluía uma lâmina oculta.
A ama, muito bem preparada, deu um passo atrás enquanto essa lâmina cortava o trinco com certa fraqueza. Rapidamente, a outra, mais nova, despertou de seu descanso e, juntas, preparam-se para guardar a porta do intruso.
A porta deixou-se abrir sem a necessidade de ser empurrada. Diante da presença daquele que estava atrás dela, não lhe restou escolha senão dar passagem.
Contudo, para a surpresa de todos aqueles cujos olhos estavam abertos e podiam ver, o que não incluía o sonolento curandeiro, o homem por trás da porta trazia consigo vestes nobres e um sorriso caloroso.
“É um prazer, Princesa Andira. Finalmente pude conhecê-la.”
“Alto lá!” A ama mais velha, bloqueando o caminho do visitante indesejado, exclamou. “Declare seu nome e suas intenções, estranho. Não se entra no quarto da princesa sem ser expressamente convidado.”
“Veja, minha cara…” Ele respondeu, sereno. “Eu ainda não dei um passo para dentro do cômodo. Logo, nele não entrei.” O homem continuou, sem andar. “Minha pequena demonstração com o trinco fez-se necessária para a compreensão de minhas intenções.”
Dada a comoção, o curandeiro despertou, e logo quando viu o homem exclamou pelo nome da princesa e posicionou-se ao lado da cama da mesma, protetivo.
“Meu nome é Lupsis. Lupsis Apolion. Vindo de terras longínquas, eu trago a cura para a doença da princesa Andira.” Declarando-se, ele então pisou estrondosamente sobre o chão de madeira, que rangeu aos seus passos.
Andira, que havia então acordado de um profundo sono devido ao ruído de Lupsis em sua porta, tornou-se consciente, e a primeira coisa que viu foi um homem grande, exageradamente grande. Sob certo aspecto, poderia ser dito que era enorme. De cabelos longos e barba cheia, ambos negros como as cinzas que emanavam do Monte Volcor, e um traje grosso, embora de bom garbo.
As serviçais acenderam as luzes do quarto, usando de seu próprio controle sobre a chama. Agora, era possível ver mais do que a silhueta enorme do visitante indesejado.
“Cansamos de curas milagrosas e tratamentos alternativos, Sr. Apolion!” O curandeiro, acostumado com charlatões e maus-caráteres, assumiu a ofensiva.
Após a aproximação do curandeiro, muito mais velho e de menor estatura, Lupsis transformou o que seria uma tentativa de afastá-lo em um aperto de mãos, e segurou a mão de seu colega de profissão, cumprimentando-o e imobilizando-o simultaneamente.
“Ora, caro curandeiro… Eu respeito a sua arcaica prática de ervas medicinais… E peço somente que respeite a minha. Veja antes de julgar-me, por favor.”
Ao fazer seu pedido, Lupsis desfez o aperto de mãos e mostrou o interior de seu casaco, de onde tirou um pequeno frasco, tampado com uma rolha artesanal de pano. Dentro do vidro, viu-se um pó metálico cinza-claro, que reluzia delicadamente ao receber a luz das velas do cômodo.
As amas de Andira aproximaram-se dos ouvidos da princesa, e sussurraram.
“Princesa, devemos chamar o vosso irmão, o Príncipe?”
Andira, sentindo uma estranha familiaridade com o homem que a visitava, decidiu por ordená-las a esperar. Na pior das hipóteses, ela pensou, seria apenas mais um charlatão.
“A cura pelo metal.” Lupsis pronunciou.
“O que!?” Incrédulo, mediante a impossibilidade que lhe era apresentada, o curandeiro arregalou os olhos.
Lupsis aproximou-se lentamente do leito sobre o qual Andira repousava, e ajoelhou ao pé da cama, abaixando a cabeça diante da visão que tinha do rosto misericordioso de Andira.
“Vossa Alteza… Por favor, permita-me discursar a respeito de minhas descobertas.”
“Permissão concedida, Sr. Apolion.” Ela respondeu, curiosa.
Então, aquele homem, a estranha mistura de apotecário e mineralogista, começou a relatar suas aventuras.
“Tão logo quanto o Sol nasceu nas vilas abençoadas pela luz divina, uma sombra gentil surgiu no subsolo, as terras onde o Sol não alcançava.” Ele discursou.
Andira, adoradora de histórias, logo prestou atenção nas palavras do visitante.
“Nos túneis fronteiriços da minha terra natal, eu, estudioso da biomancia, descobri uma pequena gruta com uma fonte de água. Havia relatos de criaturas selvagens invertendo passos da cadeia alimentar naquela região, e eu fui investigar prontamente.” Ele contou.
“Os animais que bebiam daquela água regularmente tornavam-se mais fortes, precisavam dormir menos, e se curavam prontamente até das feridas internas mais severas.” E continuou, cada palavra fazendo palpitar o coração de Andira.
“E, como estudioso, é claro que investiguei o poder milagroso daquela água. A verdade é que a nascente da fonte era em uma jazida de mineral deste composto, o qual batizei de Tanito.” Novamente, ele mostrou orgulhosamente seu pequeno frasco.
“O Tanito é capaz de absorver certos tipos de energia, e sua maior afinidade é com a energia vital em si. Na fonte, os animais que dela bebiam morriam ao ter sua energia vital roubada.” Lupsis empolgava-se a cada verso.
Claro que, ao contar essa parte da história, a reação não foi muito positiva.
“Contudo… A energia vital acumulava-se no fluxo corrente de água, e escorria para a gruta das minhas terras, tornando-a um potente agente curativo, se extraído corretamente.” Ele sorriu, e todos sorriam com ele.
“Isto que eu tenho em minhas mãos… É o metal puro, esperando para agir. O mesmo metal que fez os morcegos voarem por maiores distâncias, viverem mais tempo, que curou até mesmo a visão das pobres criaturas…” Todos prestaram atenção tão fixamente que podia-se ouvir até mesmo o crepitar das velas em casa pausa que o homem dava.
“Este será o metal que lhe curará.” Enfim, ele encerrou sua fala.
Seria esse o momento pelo qual Andira aguardava, resoluta, para cumprir seu grandioso destino? Essa dúvida surgiu, gritante, em seu peito.
O coração de Andira disparou. Ela mal podia acreditar no que ouvira.
Junto a este disparo, sensações começaram a percorrer todo o seu corpo. Sensações de queimação, de formigamento, e de calor. Todas foram progressivamente substituídas por sensações de ardor.
Seus ouvidos não mais ouviam, embora ela soubesse que seu curandeiro particular havia começado a discutir com Lupsis a respeito de seus métodos.
Eventualmente, a visão com a qual ela testemunhava essa discussão também cessou.
Restava somente o fogo, e uma forte luz azul era tudo que ela enxergava.
Todos os outros, claro, viam o que realmente estava acontecendo.
Andira tremulava, e seus lençois atearam-se em fogo.
Seus serviçais, claro, sabiam. Não era qualquer fogo. Era o fogo-fátuo.
De todos, Lupsis foi quem ficou mais maravilhado diante da beleza selvagem das convulsões de Andira.
As chamas azuis logo preencheram o interior do quarto. As serviçais, que estavam mais perto da porta, ainda tinham a chance de escapar.
O curandeiro, por sua vez, que estava ao lado de Andira, ficou encurralado em um dos cantos.
Logo, o chão ateou-se em chamas.
As serviçais, que berravam, perderam a força nas pernas ao invés de correr para fora do quarto.
“Está vendo?! É por isso que eu nunca quis trabalhar para ela! Todos os serviçais do palácio desprezam-na!” Uma delas disse à outra.
“As portas do quarto dela… São mesmo os portais do submundo…” A outra, que expressava seu desespero em silêncio, pronunciou.
A cada segundo que passava, o curandeiro se tornava mais cercado pelo fogo. O calor logo passou a afetar sua consciência.
Nada pôde ser feito até que aquele canto do quarto fosse engolido pelas brasas e transformado, num piscar de olhos, em cinzas.
As serviçais, ouvindo os gritos de dor e angústia do fiel curandeiro de Andira, recuperaram sua força de vontade e fugiram, passando o ferrolho na porta atrás de si.
Lupsis já havia sumido de vista. Elas imaginaram que ele havia fugido.
“Ah, curandeiro…” Em meio às chamas, somente Andira poderia ouví-lo.
Então, Lupsis misturou os remanescentes do homem morto ao metal que trouxera consigo.
“Um último ato de bondade. No fim, será você quem curará a princesa Andira.” Bravamente, o visitante outrora indesejado caminhou por entre o calor escaldante, queimando suas belas vestes no processo.
Ele, então, chegou à princesa, que tremia dos pés à cabeça nas cinzas de sua própria cama.
E, cortando a própria mão na lâmina de seu anel, ele uniu seu sangue à mistura do frasco. Logo, uma reação ocorreu, e um líquido enegrecido ganhou forma.
Com o que restava de ar dentro do cômodo, Lupsis respirou fundo e segurou Andira. Por fim, deu à princesa o líquido escuro, gole por gole.
“Seus servos podem temê-la, princesa Andira… Mas o amor é mais poderoso que o medo.” E, então, Lupsis ficou com Andira até o cessar do incêndio.
A princesa, desmaiada, saberia de seu salvador somente no dia seguinte, quando acordou, sentindo-se melhor do que nunca.
Naquela noite, o príncipe correu até o quarto ao saber de sua irmã, e teve a oportunidade de se maravilhar com o efeito do Tanito e com seu criador.
Claro, Lupsis fora nomeado o novo curandeiro da princesa por sua bravura e perícia.
E, pelos próximos meses, tudo seguiu bem. Andira ingeriu pequenas quantidades do metal regularmente, e suas crises aconteciam somente quando ela se esquecia.
De tempos em tempos, Lupsis viajava de volta para suas terras para buscar mais do precioso composto.
Até que, num certo dia, ele tomou uma decisão.
“Princesa Andira?” Ele bateu à porta dos novos aposentos da princesa, que foram reformados e reforçados depois de seu último episódio.
“Sim, Lupsis? Pode entrar.” Ela disse, sorridente.
“Princesa…” Ao abrir a porta, ele não demorou a se dirigir à princesa, tanto em seus passos quanto em suas palavras. “Nos últimos tempos, eu venho conversando com seu irmão, e… Nós achamos que lhe beneficiaria visitar as jazidas de Tanito.”
“Mesmo!? Mas… Meu irmão nunca me permitiu sair de Volcor.” Ela respondeu, hesitante.
“É possível que ter contato com as cavernas que descobrimos faça um bem sem precedentes para a sua saúde. Seu irmão também acredita nisso.” Lupsis argumentou.
“Eu não sei… Sinto que poderei fazer mais bem enquanto residir aqui no palácio.” E o vai-e-vem continuou.
“Princesa… Nada há de se comparar ao bem que você, e somente você, poderá fazer uma vez que esteja curada por completo.”
“Certo…” Ainda medrosa, Andira viu-se obrigada a concordar.”
“Partiremos ao anoitecer. Retornaremos em pouco tempo, você verá.” Lupsis afirmou.
E, ao anoitecer, eles partiram.
Andira, claro, se despediu de seus familiares, e os dois viajaram após receber a bênção do Imperador.
Lupsis havia se tornado o último subordinado imperial disposto a servir a Andira. Por isso, eles não foram acompanhados de mais ninguém além do cocheiro, cujo próprio Lupsis havia trazido consigo de sua última viagem.
A jornada foi longa.
Juntos, Andira e Lupsis viajaram por terras que muitos somente imaginariam visitar. Primeiro, eles puderam ver o nascer do Sol mas terras que a deusa abençoou com sua luz.
Após mais algum tempo, eles logo viram a cidade que fora a pioneira no nascimento e desenvolvimento da Era do Bronze.
“Logo logo, Andira, eles verão… Esta não será mais a Era do Bronze. Será a Era do Tanito!” Lupsis proclamou, eufórico.
Por fim, eles pararam sua viagem nos arredores dessa próspera nação.
A escavação havia progredido, e Lupsis havia se tornado um senhor de terras relativamente prósperas. Uma pequena comunidade havia se formado.
“Bem-vinda, Andira. Esta é a L.A, minhas terras.”
O que Andira viu diante de seus olhos era uma humilde vila de mineradores, alfaiates, ferreiros e toda a base necessária para operar as minas de Tanito.
Assim que chegaram, ambos foram muito bem recebidos. Lupsis Apolion era, claramente, muito mais do que apenas um humilde apotecário de terras distantes.
“Lupsis… Quem é você, de verdade? E o que você vai fazer… Depois que conseguir me curar?”
O homem, então, olhou para Andira com uma expressão que ela, até então, desconhecia.
“Sabe, é que…” Andira continuou. “Você já tem tanto aqui. É uma terra tão bela, tão rica… E tem tantas boas pessoas aqui…” Andira hesitou. “Então eu pensei que… Bom, você estaria, na verdade, procurando…”
“Conhecimento, Andira.” Lupsis sorriu.
Ela, confusa, perdeu as palavras.
“Você é meu experimento. O mais promissor deles. Minha favorita.” Suas palavras, agora frias como as cavernas que os cercavam, perfuraram o coração quente de Andira.
“O quê!?” Indignada, ela esbravejou.
Fazendo sinal para dois dos homens que assistiam a chegada da princesa e de seu senhor, Lupsis gritou.
“Levem-na para o quarto de número 6.”
“Lupsis, o quê é isso?! Experimento?! Que ultraje! Eu pensei que-” Andira gritou, porém foi interrompida.
Lupsis acertou-a no rosto com sua mão aberta. A lâmina de seu anel cortou de um lado ao outro da face da nobre princesa.
O impacto foi tão forte que ela perdeu a consciência por um instante.
Nesse instante, ela lembrou-se do calor das vilas abençoadas pelo Sol. Também se lembrou dos sons do nascer de uma nova era que ela pôde escutar ao passar pela cidade vizinha.
A partir daquele instante, esses lugares seriam apenas isto. Memórias.
Andira tocou em seu rosto quando recobrou o controle de suas mãos. Ela, então, viu sangue.
Assim como o de todos os outros que ali viviam, seu sangue era vermelho.
Não mais azul ou dourado. Vermelho.
Apesar de sua resistência, os homens logo exerceram controle sobre Andira.
O quarto de Andira, no subsolo para onde ela foi levada, era cercado por barras de Tanito que se tornavam mais fortes a cada vez que ela segurava ou batia nelas.
Lupsis, o homem a quem ela uma vez deu seu coração e confiança, agora aparecia somente para dar-lhe doses cada vez maiores do metal.
Quando ela recusava, ele deixava-a ter fome e sede por três dias e três noites.
Nesse tempo, suas convulsões voltavam, mais frequentes a cada hora.
À beira da morte, e do desespero, ela não podia resistir ao alívio rápido da energia vital armazenada no Tanito.
Lupsis, às vezes, trazia pequenas criaturas do mundo exterior. Pequenos mamíferos, pássaros, roedores.
Andira os alimentava, com esperanças de que eventualmente eles aprenderiam que fugir era a escolha correta.
Contudo, quando regressava, Lupsis agarrava os animais com seu anel cortante, fazendo-os sangrar até a morte. Ele, então, misturava o sangue ao Tanito, e dava para a princesa beber.
Logo, Andira não precisava mais se alimentar. Para sobreviver, apenas o metal bastava.
Andira não precisava mais da luz do Sol, ou da brisa fresca das manhãs.
Ela não precisava nem mesmo das cinzas do coração de sua terra natal.
Seu rosto progressivamente ganhou mais cortes, que se tornavam cicatrizes quando a próxima dose de Tanito chegava.
Quando havia energia para resistir, Andira agredia as barras que a aprisionavam. Suas mãos sangravam, e ela via sempre o mesmo tom de vermelho.
Sua prisão fedia ao ferro do próprio sangue.
Cada dia mais, ela sentia repulsa pelo Tanito que a mantivera viva.
Com o tempo, Andira não conhecia mais nenhum humano à sua volta exceto seu captor. Para eles, a vida da princesa foi reduzida ao número de sua cela.
Seus captores se referiam à princesa somente como o experimento do sexto quarto.
E, ao completar os primeiros seis meses desde sua captura…
Toda a sua existência agora se resumia ao Tanito.